por Rui Paulo Sartoretto
Isso que aí está com nome de educação politécnica é engodo, é fraude
Em
primeiro lugar: não se faz educação politécnica com escolas de um turno
só. Seja no mundo liberal-capitalista, seja no mundo socialista, onde a
educação politécnica foi implantada pelo Estado, as escolas e
institutos ditos politécnicos são de tempo integral.
Não se faz
educação politécnica com escolas sem oficinas, sem bibliotecas
atualizadas, diversificadas e informatizadas, com laboratórios
sucateados. Não se faz educação politécnica com prédios escolares
construídos para uma escola de produção em série, com salas sem
climatização, com forros caindo na cabeça dos alunos, com janelas que
não fecham, com ventiladores que mais parecem helicópteros decolando.
Não se faz
educação politécnica enfiando-a goela abaixo ou armando consultas faz de
conta depois que tudo já estava decidido, apenas para deixar a ilusão
de que os alunos e os pais foram ouvidos.
Acima de
tudo, não se faz educação politécnica com professores desmotivados,
insatisfeitos, aviltados, ameaçados e - com toda a razão - revoltados.
Com professores a quem se oferece um salário inicial que no primeiro
mundo, com crise e tudo, corresponderia ao seguro-desemprego ou que em
alguns países os mendigos de rua recebem para não morrerem de fome.
Não se faz
educação politécnica com professoras e professores obrigados a trabalhar
em duas e, por vezes, em até em três escolas, levando para casa pilhas
de trabalhos e de provas para corrigir nas horas que sobram depois do
fogão, do tanque, da vassoura e do ferro de passar. E sobram?
O
senhor secretário de Educação e o próprio senhor governador - ao que
sei - são de formação socialista. Pois então, eles deviam ter aprendido
que as mudanças não acontecem só porque as imaginamos, que as mudanças
não se realizam porque foram escritas no papel ou porque figuram nos
relatórios ou porque palavras bonitas enchem a boca de algumas matronas
pedagógicas. Numa linguagem que eles conhecem, as mudanças não começam
na superestrutura. Uma literatura, que o senhor secretário deve ter
lido, preconiza que as mudanças, para acontecerem, necessitam de
condições objetivas, concretas. Simples e antigo: a semente não germina
em terra seca.
A educação
politécnica de que eu tenho notícias supõe escola de tempo integral.
Supõe escolas com laboratórios bem equipados, nas diferentes áreas do
conhecimento, escolas com bibliotecas atualizadas, bem organizadas,
geridas e atendidas por profissionais da área e não por atendentes
improvisados. A educação politécnica exige escolas e salas de aula com
outra arquitetura.
A verdadeira
educação politécnica não se faz sem oficinas e ambientes de trabalho
dentro da própria escola. O trabalho, como princípio educativo,
fundamento da escola politécnica, não se realiza na empresa privada
capitalista. Os objetivos da empresa privada são outros. Sua lógica é
outra. Os objetivos da educação politécnica não casam com os objetivos
da empresa capitalista. O trabalho, na perspectiva da educação
politécnica, busca desenvolver valores e formas de organização
diferentes e, por vezes, opostos aos da empresa privada.
Mais
que procurar o mundo do trabalho que fica fora da escola, com alunos
borboleteando de empresa em empresa, a verdadeira educação politécnica
preconiza que a própria escola se transforme numa comunidade laborativa
onde o jovem vai aprender não os procedimentos específicos de uma
determinada profissão, mas os fundamentos do trabalho que são o
planejamento, a organização, a utilização racional dos recursos
disponíveis, o respeito pelo meio ambiente, a cooperação, o uso da
tecnologia, a inovação e a permanente avaliação crítica do que foi
feito. E isso se pode fazer, por exemplo, com a limpeza da escola, com a
conservação dos móveis e do prédio escolar, com a organização da
biblioteca, com a horta escolar, com o serviço de merenda, com uma
oficina de carpintaria. Os burocratas de plantão me dirão que essa
escola não é possível, que uma escola assim é muito cara. Mas em que
país do mundo uma educação de qualidade não é cara? A Finlândia que o
diga, a Coreia do Sul que o diga. E depois, podem até achar que uma
escola assim não é possível, mas não chamem de educação politécnica o
que nem para arremedo serve.
A educação
politécnica que eu conheço não visa preparar o aluno para o mercado do
trabalho. Ela usa o trabalho como princípio educativo, como instrumento
de formação para a vida, como fonte de conhecimento e como matéria-prima
de crítica social das próprias relações de trabalho. A educação
politécnica que eu conheço visa a preparação do cidadão, visa a formação
humana em todas as suas dimensões - física, mental, intelectual,
afetiva, estética, política e prática, combinando estudo e trabalho.
A
educação politécnica que eu conheço não substitui conteúdos
fundamentais por seminários faz de conta. A não ser que se queira
reforçar uma dicotomia que já existe na educação brasileira desde D.
João VI (aquele que fugiu de Napoleão): uma escola para os do andar de
cima (paga) e uma escola para os do andar debaixo, e sendo para os do
andar debaixo, qualquer escola serve. Pode até ser uma educação
politécnica de segunda categoria, mais barata, faz de conta, pela
metade, que, afinal, para os do andar debaixo o que importa é saberem
ler, escrever e contar. Que mais querem os do andar debaixo?
Pretensiosos!
Isso que aí
está com nome de educação politécnica é engodo, é fraude. Os próprios
alunos, pelo menos os mais antenados, já estão se dando conta disso, de
que estão sendo enganados, expropriados, fraudados. Se esse modelo de
educação politécnica fosse realmente a sétima maravilha que apregoam, se
fosse realmente uma escola de qualidade, esses mesmos burocratas que a
conceberam e que a querem impingir a qualquer custo deveriam ser os
primeiros a colocar seus filhos na escola pública. Mas, em geral, não é o
que acontece: "a escola politécnica é para os filhos dos outros, os
meus vão para a escola privada". Vai falar em capacitação profissional,
em preparação para o trabalho em escolas privadas para ver o que
acontece. Isto é para os do andar debaixo.
A exemplo de
outras três reformas de ensino que, nos meus 44 anos de sala de aula, já
sofri como professor, esse arremedo, esse simulacro de educação
politécnica que estão nos impondo de forma autoritária, sem a mínima
discussão, sem nenhum debate, sem ouvir realmente aqueles a quem mais o
tema interessa, está fadado ao fracasso. Por uma razão muito simples:
esse ensino, a que equivocadamente chamam de politécnico,
descaracterizado, deturpado, apequenado, distorcido, equivocado,
empobrecido, nem vai preparar o aluno da escola pública para o mundo do
trabalho nem vai lhe dar condições para se apropriar dos conhecimentos
de que necessita para aspirar uma vaga numa boa universidade pública,
num curso socialmente prestigiado.
A impressão que se colhe é a de que a única preocupação dessa reforma do ensino médio é melhorar as estatísticas, baixar os índices de evasão e repetência e preparar mão de obra barata para o voraz e selvagem mundo do mercado. E não pensem que estou aqui defendendo a escola tradicional, da saliva, da prova e do conteúdo pelo conteúdo. Os meus alunos sabem disso.
Não consigo entender como o senhor secretário de Educação, a quem eu conheci lá pelos idos de 80 como referência de pensamento socialista, esteja traindo seu passado e se comprometendo com uma proposta de educação politécnica tão reducionista, tão deturpada, tão equivocada, tão subserviente. A pedido de quem? Atendendo a que interesses? Pobre juventude!
por Rui Paulo Sartoretto - Professor, 44 anos de sala de aula (sartorettoadvocacia@hotmail.com)
Fonte: profemarli.comunidades.net
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